A Vila: A jornada para realizar seus sonhos pode custar sua essência como ser humano
Na coluna de Omar Dimbarre, um conto sobre a busca pela nossa verdadeira essência.

A escuridão ainda se espalhava pelo vale, iluminado somente pelos raios da lua cheia, quando caí na estrada. Enquanto caminhava, um filme da minha vida rodava em minha mente. Eu não era mais um adolescente que vislumbrava um futuro, nem tão pouco, um idoso com todo o chão percorrido.
Muitos dos meus sonhos já haviam sido realizados, outros se perderam no caminho, e eu já não trazia mais dentro de mim, aquela magia que habitava as mentes e corações de um tempo, que foi engolido pelo próprio tempo.
Cheguei aos pés do morro que se erguia em direção a uma antiga vila, que outrora abrigava uma estrada de chão empoeirada que ligava suas casas, que mais pareciam rabiscos desenhados em uma folha de papel, do que lares que abrigavam seus moradores. Os seus jardins eram cinzentos, sem cores e sem vida.
Estive lá uma única vez, quando tinha toda a minha história para escrever, e depois nunca mais retornei.
Naquela época, o caminho que ligava o vale barulhento que se esparramava por suas beiradas, ao silêncio que impregnava o seu topo, era bem feito, de fácil caminhar.
Corria uma lenda de que cada pessoa que se aventurava a conhecer o que se escondia quase no meio das nuvens chegava a um lugar diferente, modelado à medida que ela realizava a sua jornada.
Conforme seus sonhos fossem se concretizando, as casas iam sendo remodeladas, e os rabiscos iam sendo substituídos por pinceladas com cores vibrantes, e seus jardins explodiam celebrando a luz, através de seus girassóis.
Mas, havia um porém… Se a realização dos seus sonhos começasse a destruir sua essência e sua alma ficasse perdida em um mundo que não reconhecesse mais como seu, a estrada que leva ao cume se tornaria cada vez mais precária, até não existir mais.
O breu da noite ainda não havia sido substituído pelo esplendor do dia, e aproveitei para deitar e descansar em um canteiro coberto por uma grama verde que se estendia na base do monte. Aquele gramado servia para que os viajantes cansados pudessem recompor suas energias antes de iniciar o percurso. Fechei os olhos e adormeci.
Quando acordei, do meu lado direito, havia um ancião de barbas longas e brancas, olhar profundo e mãos calejadas, trajando uma túnica amarela envelhecida e sandálias. Estava em profundo silêncio, meditando, e ao seu lado, um grosso livro antigo, que parecia conter toda a história de alguém.
Do meu lado esquerdo, encontrava-se um homem robusto, com roupas novas, e equipamentos para auxiliar na subida. Estava com o olhar perdido no horizonte, como alguém que busca por algo, sem saber o quê.
Uma fina e densa camada de névoa ia lentamente se erguendo do solo, enquanto os raios do sol que chegavam junto com o amanhecer e aos poucos aqueciam o dia, a empurravam para cima, encobrindo o caminho, tornando-o perigoso.
O idoso ergueu-se e começou a subir, enquanto o mais jovem permaneceu sentado, aguardando que a neblina se dissipasse.
Minha intuição me disse para confiar e seguir em frente. O nevoeiro aos poucos encortinava a paisagem. Não havia mais estrada, somente terra e alguns galhos velhos de árvores que um dia verdejantes, estendiam suas sombras pela encosta.
Com a visibilidade bastante reduzida, a subida se tornava cada vez mais desafiadora e perigosa. Um passo em falso, um tropeço, um galho que cedesse, resultaria numa queda brusca e violenta, e a morte seria quase que certa. Era preciso ir tateando o local com os pés e as mãos, para sentir o que havia pela frente
Meu guia continuava abrindo caminho, me mostrando aonde pisar e me agarrar, mas era necessário ter cuidado e, lentamente, ir galgando o morro.
Desafios surgiam a todo momento. Crateras brotavam do chão, enquanto escorpiões e aranhas saiam por detrás dos gravetos e folhas secas. Meu condutor sabia onde pisar e em que se agarrar.
Exaustos mentalmente e fisicamente, paramos para descansar um pouco, em uma grande pedra que parecia estar grudada no chão. Estava muito difícil prosseguir, quase como cegos. De repente, um vento gelado, parecido com um grande sopro, começou a uivar e a varrer o nevoeiro, descortinando a paisagem.
Foi neste instante que olhei para baixo e me deparei com o homem que havia ficado para trás, começando a subir. Ele vinha em passos largos e utilizando seu material de alpinismo de forma efusiva. Tinha pressa e pela forma bruta como andava, parecia estar furioso.
Rapidamente foi se aproximando e se transfigurando em uma figura envolta em sombras, com o seu rosto encapuzado, tal qual um carrasco.
Sem dizer uma palavra, meu condutor se tornou luz, e me fez compreender que se aquele ser nos alcançasse, consumiria minha alma de vez, e eu passaria a vagar pelo mundo, perdido na minha própria escuridão. Tínhamos pressa.
Um galho estalou ao me agarrar nele, mas quando cedeu, encontrei sua mão estendida e consegui me amparar nela. O perigo estava cada vez mais próximo, com aquela criatura avançando sinistramente, projetando suas sombras, cada vez maiores no chão. Aos poucos, as trevas iam encobrindo o vale. Sua vontade de consumir o meu eu parecia ser descomunal.
Precisávamos chegar no local idealizado por meus sonhos, antes que ele nos alcançasse. Lá, ele não teria força para me consumir.
Algumas pedras começaram a rolar em nossa direção. No começo, eram pequenas, e conseguíamos desviá-las. Meu mentor, preocupado, passou a seguir ao meu lado, até que uma grande pedra veio em minha direção. Para não ficar em seu trajeto, eu precisava pular sobre uma grande fenda, um abismo.
Quando fui saltar, escorreguei e caí, mas o ombro daquele homem sem face estava ao alcance de minhas mãos, e consegui me segurar. Com um movimento brusco, joguei o peso do meu corpo para o dele, conseguindo me equilibrar. Ele me envolveu com seu abraço, e, abraçado e amparado, cheguei em segurança ao cume.
Uma brisa leve, murmurando palavras que não compreendi, passou por mim, levando consigo meu guia. Em seguida, um vento forte e quente subiu do morro, arrastando consigo a entidade e jogando-a contra a vila. Labaredas vorazes se formaram e, enfurecidas, consumiram tudo o que tinha no lugar.
Estático, vislumbrei tudo destruído ao meu redor. Precisava retornar ao inicio da jornada, mas o cenário era desolador. Estava arrasado.
Comecei a caminhar por aquela terra devastada, em busca de uma saída. Meus olhos ardiam, enquanto meus pés cansados precisavam prosseguir. Até que uma trilha verdejante, brotou do nada, em minha frente.
Comecei a percorrê-la. Árvores frondosas com orquídeas de flores grandes e exuberantes, penduradas em seus galhos, beiravam o caminho. Uma casa de cor viva surgiu ao lado de uma curva. O som de uma gaitinha de boca e um violão escapava por uma de suas janelas, e fui me aproximando para ver o que acontecia. Um grupo de amigos conversava euforicamente, enquanto a carne assava no espeto, e os copos de cervejas se espalhavam por suas mãos. Havia algo mágico ali.
Continuei minha jornada. Um jovem trajando uma calça jeans desbotada e revestido de luz se aproximou sorrindo e me ofereceu suas moedas. Aceitei, pois não tinha mais nada em meus bolsos e sentia fome. Ao ver minha roupa estraçalhada pela odisseia que havia enfrentado, ele me presenteou com suas vestes. Quando dei meu primeiro passo para prosseguir, me puxou de volta e entregou-me seus discos. Sorri, ele me disse adeus e se dissipou no ar. Segui em frente tentando entender aquele encontro. Mas, na verdade, estava tudo tão óbvio. Cheguei nos pés do morro renovado e pronto para reconstruir a vila.

Omar Dimbarre é produtor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.
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