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Entre Trilhos, Garrafas e Tiros – A Emocionante História de Zé Ferroviário

O colunista Omar Dimbarre relembra uma história que mais parece ban-bang, com aquela pitada de humor.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre

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As águas despencavam do céu torrencialmente, em meio às luzes dos relâmpagos que incendiavam a noite, balançada pelos estrondos poderosos de trovões que rasgavam a cidade, quebrando seu silêncio, acordando e amedrontando as pessoas, que impacientes, saltavam da cama.

Buscando apaziguar o grande dragão que pairava sobre as nuvens, rugindo e cuspindo fogo, velas eram acesas, ervas queimadas, e orações suplicando a Santa Bárbara para que a fera fosse acalmada, eram proferidas.

A aflição que chegava junto com a tempestade e se instalava nas casas, fazia com que os ponteiros do relógio caminhassem em passos lentos, quase aprisionando o tempo em meio à fúria da natureza.

Enquanto a lua deslizava em direção ao firmamento, a tormenta ia perdendo um pouco sua força, mas sem ir completamente embora. O sol ainda não havia recebido licença para entrar, quando Zé Ferroviário rompeu com seu descanso, tomou seu café, calçou seu par de botas, colocou sua capa de chuva, seu capacete, e se preparou para ir até a estrada de ferro e começar sua ronda, caminhando 18 quilômetros rumo à Barra Fria.

O rio que havia despencado sobre a terra nos últimos dias havia sido suficiente para revolver o solo dos barrancos que margeavam a estrada de ferro, carregando consigo pedras e as depositando sobre a ferrovia.

Às sete horas da manhã, o primeiro trem vindo do Rio Grande do Sul chegava à Estação da Barra Fria, e era necessário inspecionar todo o trajeto que ele faria até a Estação de Herval d'Oeste, pois um objeto atravessado em sua rota poderia provocar o descarrilamento dos vagões, comprometendo a viagem.

As rodas dos trens, passando no mesmo local constantemente, friccionam a superfície dos trilhos, polindo-os, e um metal liso e limpo age como um espelho. Com o  cenário a ser percorrido envolto pelo véu preto noturno, rasgado pela luz vindo da lua, das estrelas ou de qualquer outra iluminação, que reflete na via férrea, criando uma espécie de clarão, parecendo relampejar. E era através desta claridade, deste brilho que emanava, que Zé se guiava no caminho que iria percorrer.

Além do cuidado com as rochas que rolavam e podiam causar acidentes, o aço dilata quando aquecido, podendo levantar a linha e exigindo a remoção do excesso. Já com a temperatura baixa, ele se contrai, sendo necessário remendar com um pedaço. Durante a ronda, era necessário sinalizar o local onde este fenômeno ocorria para alertar o maquinista. Nos dias normais de trabalho, a equipe solucionava o problema. Caso não houvesse essa manutenção, o trem descarrilava.

Um descarrilamento exigia um esforço muito grande da equipe. O trabalho para recolocar no lugar um vagão vazio, que pesava 20 toneladas, na maioria das vezes, era braçal, sem guincho. Era utilizado um macaco, dormentes e cunhas de madeira, e o perigo estava sempre a espreita, aguardando qualquer erro emergir, para que os envolvidos fossem esmagados. Uma locomotiva exigia um esforço mais árduo ainda, pois pesava 90 toneladas.

Findada a inspeção, era hora de pegar carona no trem que fazia a linha, mas nem sempre ele estava lá. Os pés cansados, então,  já travando uma luta com suas pisadas, precisavam retornar. 36 quilômetros de caminhada e de superação era o desafio a ser vencido. As verificações eram realizadas todo sábado e também em qualquer dia que o percurso fosse castigado pelas chuvas, com uma equipe se revezando.

Com o cansaço se acumulando junto com os anos que se somavam às marcas das pegadas, pelos braços doloridos e pelas cicatrizes mentais forjadas pelos perigos que se escondiam em cada esquina de sua trajetória, uma década após ter vindo com sua esposa, de Machadinho, no Rio Grande do Sul,  e ter iniciado sua jornada na Rede Ferroviária, Zé resolveu começar uma nova vida.

Acreditando que agora sua labuta seria mais fácil, sem imaginar que a noite nem todos os gatos são pardos, nasceu o Bar do Zé Ferroviário. O ano era 1985, e uma imensidão de trabalhadores, após um dia cansativo, refrescavam as ideias nos botequins que encontravam pelo caminho. E o Bar do Zé estava no meio do caminho de muitos… E muitos, armados até os dentes.

E entre facas, canivetes, revólveres, facões, navalhas e tchacos, rolavam cervejas, cachaças e todo tipo de água que passarinho não bebe. E desta mistura explosiva surgiam valentões, valentinhos, palhaços, bebês chorões, falastrões, piadistas, mentirosos e mais uma infinidade de personagens, alguns teatrais, outros cinematográficos, outros surreais. A vida noturna no Bar do Zé era um mundo à parte fincado no coração de Herval d'Oeste.

Mas neste cenário povoado por tantas figuras folclóricas dançando ao som de suas próprias canções, a paz, muitas vezes era quebrada: e entre impropérios, copos quebrados e bate-bocas, restava chamar os homens da lei.

Cansado de toda noite ver os policiais de plantão fazendo a rota delegacia-Bar do Zé, o delegado chamou o proprietário e deu um ultimato: 'Zé, ou você coloca ordem no estabelecimento, ou volta para a estrada de ferro. Você é o dono, se vire!'

Com aquelas palavras impregnadas em sua mente e disposto a fazer reinar a ordem em seu ganha-pão, Zé tomou uma atitude drástica: confeccionou dois cacetes: um pequeno e fino, para bater na bunda dos bebuns que só incomodavam sem valentia, e outro grande e mais grosso para enfrentar os brigões e aqueles que, vivendo abraçados com a violência, bagunçavam a vida do seu Bar.

A desordem foi controlada, a polícia mudou seu itinerário noturno, e o bar foi desenrolando sua história até que a busca por uma vida mais pacata, transfigurou seu ponto comercial em um mercado.

A vida de empresário varejista começou tranquila como água de poço, e os cacetes que tanta serventia tinham no ramo anterior, foram aposentados. Com a expansão dos negócios ultrapassando as fronteiras das nossas cidades, foi necessário adquirir uma Mercedes Benz 608, e uma vez por mês, ou, caso houvesse necessidade, a cada 15 dias, o caminhão era carregado com mantimentos e a estrada tornava-se condutora dos negócios.

Um assentamento rural em Água Doce fazia parte do roteiro de entregas e um bom vínculo de amizade havia sido estabelecido com os assentados.

Bandidos em fuga que buscavam um esconderijo, se estabeleceram nas cercanias e, escondidos em meio à mata nativa, em um local completamente ermo onde até o canto dos pássaros havia batido em retirada com receio de serem atacados, ficavam de tocaia, aguardando que suas desavisadas vítimas compusessem o cenário desolador, que então seria preenchido com uma saraivada de balas.

Zé e seu ajudante, sem imaginar que a odisseia dos dois, esstava prestes a terminar no meio do caminho, passavam tranquilamente, quando a dupla, encobrindo os rostos com máscaras e empunhando armas, saltou abruptamente à frente no percurso, formando uma barreira humana.

Zé Ferroviário

Temendo que o ponto final de sua história estivesse prestes a ser colocado, Zé começou a rezar intensamente, enquanto seus pensamentos eram atordoados por imagens rebuscadas, e pela dúvida sobre a decisão que precisava ser tomada e que poderia significar se sua morada continuaria em cima da terra, ou se mudaria para debaixo de sete palmos.

Rapidamente fez o sinal da cruz e disse: 'Tô indo, meu Deus!' Afundou o pé no acelerador e seguiu em frente, enquanto os dois bandidos miraram suas armas e abriram fogo. Voaram balas por todos os lados, e uma passou zunindo, quase beijando a orelha do intrépido motorista.

Apesar do susto e de alguns furos na carroceria do caminhão, a decisão tomada foi acertada, e não houve necessidade de uma mudança radical na localização da sua residência.

Zé Ferroviário, depois deste susto, continuou seguindo sua vida e tocando seu mercado na Volta do Maurício, agora vivendo tranquilamente, sem necessidade  de caminhar  pelos trilhos embaixo de tempestade, nem de utilizar seus dois cacetes para manter a ordem, e sem uma chuva de tiros passando sobre sua cabeça.

Omar Dimbarre é produtor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.


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