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Pai – Sua História é Minha História

Na coluna de hoje de Omar Dimbarre uma homenagem ao Dia dos Pais.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre

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O murmurar do vento, soprado pelo tempo que acabou ficando pelo caminho da minha jornada, trouxe consigo nesta manhã uma melodia que embalou vários sábados da minha juventude. Um assovio se espalhava pela casa, envolvendo a tarde com seu silvo cativante, revezando com o harmonioso som emitido por uma gaitinha de boca.

No sofá da sala, meu saudoso pai, Alfredo Dimbarre, nascido em 18 de dezembro de 1918, em Ponta Grossa (PR), estava sentado, transfigurando aquele dia comum, tornando-o inesquecível, fazendo-o transbordar de encanto.

Meu pai amava música. Em um armário pequeno que servia como um guarda-discos, ele acomodava sua coleção de vinil, em sua maioria de grandes orquestras, suas relíquias. Ray Conniff e Paul Mauriat marcaram minha infância.

Seus olhos deixavam-se deslumbrar pela sétima arte. Maravilhava-se com a tela grande. Através das notas musicais produzidas por seu assovio, acabei conhecendo o popular faroeste italiano “O Dólar Furado”. Muito antes do cinema me arrebatar, eu já sabia da existência do filme.

O filme “King Kong”, lançado em 1933, marcou toda uma época. O gorilão mais famoso do mundo causou um impacto tão grande na geração que o assistiu que se tornou um ícone cultural que resistiu ao tempo. Retornou às salas de cinema em uma nova versão, no ano de 1976.

Imerso em nostalgia e querendo reviver aquela experiência marcante e compartilhar comigo aquela sensação memorável, levou-me ao cinema. E o deslumbramento que ele teve em sua juventude se debruçou sobre mim.

Quando o vento frio soprado pelo inverno se despedia, a natureza renascia, trazendo consigo o melodioso e suave canto do sabiá-laranjeira. O jardim de nossa casa, então, resplandecia com a beleza suntuosa da explosão de flores das orquídeas que o pai, com muito zelo, cultivava.

Adorava plantar árvores e acompanhá-las crescendo até que suas sombras majestosamente cobrissem a terra. Com a chegada dos dias mais longos e os raios do sol começando a abraçar efusivamente tudo ao seu redor, duas frondosas jabuticabeiras carregavam os galhos com frutos tão negros quanto o breu que cobre a noite. Elas eram o xodó do pai, que orgulhosamente colhia suas dádivas.

A estrada era também seu caminho para a felicidade. Adorava viajar, vislumbrar novas paisagens, se deixar tocar pela natureza, ou retornar a lugares que já conhecia para reviver sensações inesquecíveis. A minha infância foi a época da minha vida em que mais quilômetros percorri.

Em 1963,  atuando expressivamente no Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Carnes e Derivados, ele fez parte de uma equipe que passou quatro meses conhecendo os Estados Unidos. Aprendeu a falar inglês. Não o dominava, mas sabia o suficiente para se virar. Uma de suas maiores relíquias era um álbum com postais e fotos dessa viagem, e que guardo comigo.

Aos 12 anos de idade, convivendo com um pai intransigente, olhou para longe, quase o infinito, e decidiu que era hora de buscar sua liberdade.

Ele subiu em sua bicicleta e partiu de sua cidade natal para São Paulo. Cerca de 526 quilômetros, pedalando até seu destino final. Proeza realizada em 1931, quando não havia rodovia pavimentada ligando os dois lugares, em uma jornada realizada durante dias, por estradas de terra, caminhos rudimentares e precários. Um desafio imenso, vencido por um garoto.

Na metrópole, se fez adulto e começou a trabalhar, e, mesmo com tantos obstáculos, jamais se perdeu em sua trajetória.

Os trilhos da estrada de ferro o trouxeram para o Vale do Rio do Peixe. A bordo de um vagão, trabalhando como garçom, chegou a Herval d´Oeste, e aqui fincou suas raízes.  Por anos, trabalhou no  Frigorífico Pagnoncelli. Conheceu minha mãe, apaixonaram-se e construíram nossa família.

Quando a televisão ainda engatinhava no estado de Santa Catarina, lá no ano de 1965, o pai foi o primeiro morador de Herval d´Oeste a comprar um aparelho. Ainda não havia emissoras no estado, e o sinal era captado por torres em pontos estratégicos, que o recebiam da TV Piratini, de Porto Alegre, filiada à TV Tupi, e o retransmitiam para cidades e vilas catarinenses.

Os demais hervalenses puderam usufruir da novidade que acabava de chegar à cidade: o pai realizava sessões no Clube Tropical, compartilhando sua aquisição com o povo, que se aglomerava no salão para assistir a programas de auditório, jogos de futebol e novelas. As pessoas, em sua maioria, funcionárias do Frigorífico Pagnoncelli, acompanhavam tudo paradas e perplexas, porque só conheciam as imagens em movimento que eram captadas por seus olhares no escuro de uma sala de cinema.

Os momentos árduos e de privações que enfrentou em sua vida, sendo superados sempre com muita resiliência, o tornaram um homem com uma imensa empatia, sempre preocupado com o próximo, estendendo seus braços, abraçando e ajudando amigos e parentes em momentos de extrema dificuldade.

Ele possuía um grande senso de humor e costumava criar bordões que repetia à exaustão com as crianças, que o adoravam. E a imagem dele apanhando um bebê no colo e dançando pela casa traz consigo um misto de ternura, alegria, uma espécie de poesia em movimento, unindo a delicadeza e a inocência de uma vida que se iniciava com a sabedoria, a experiência e o amor de quem já havia construído boa parte de sua história.

Meu pai, como muitos de sua época, havia cursado apenas o primário, mas sua sede de conhecimento o tornava um homem sábio. Entre tantas imagens que guardo, destaca-se a dele lendo seu jornal, um hábito que era sagrado. Preciosa também era sua coleção de Seleções do Reader's Digest, publicações muito populares nos anos 60, que traziam em suas páginas uma variedade imensa de assuntos: artigos de outras publicações, resumos de obras literárias, além de informações sobre saúde, ciência, história e curiosidades.

Ele tinha uma sede muito grande de viver, de continuar construindo sua história por muitos e muitos anos, mas no dia 9 de junho de 1990, aos 71 anos, um ponto final foi colocado nesta trajetória fascinante.

Eu trago comigo tantas paixões que ele tinha: música, cinema, viagens, plantas, o ato de dividir a arte que amo através de exibições públicas, a sede pelo conhecimento, a empatia pelo próximo. Seu legado está impresso em meu DNA de forma tão profunda que é difícil delimitar meu nascimento no dia 9 de novembro de 1964.

Trazendo tanto dele em minha alma, seria mais correto dizer que nasci no dia 18 de dezembro de 1918, em Ponta Grossa, no Paraná, assim como meu pai jamais morreu naquele dia 9 de junho de 1990. Ele segue vivo dentro de mim.

Omar Dimbarre é produtor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.


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