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Pedro, seu cavalo Tropeiro e a Panela de Ouro

Conto de Omar Dimbarre transforma a amizade entre um peão e seu cavalo em uma jornada fantástica.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre

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As coxilhas que se elevavam ao redor da cidade gaúcha de Carazinho estavam sendo varridas pelo congelante vento minuano no inverno de 1941, quando Pedro Estáquio, um peão humilde, que cuidava das terras do fazendeiro Setembrino Novaes, com as mãos congeladas e o queixo batendo, encerrou seu exaustivo dia e se recolheu em sua tapera.

Sua modesta residência localizava-se próxima à casa-grande, utilizada pelo patrão apenas em suas visitas. Novaes, após vender a maior parte do rebanho, estava abandonando aquela estância para dedicar-se a outras propriedades.

Um lampião, uma cama simples com um colchão de palha seca envolto em estopa, e cobertas de lã para suportar o rigoroso inverno, um caixote para guardar seus pertences, um banco rústico de madeira e uma mesa para as refeições compunham o interior de sua moradia.

Pedro e Tropeiro:

Pedro era um homem humilde que, à custa de muita labuta, havia conseguido comprar um cavalo. Mantendo-o sempre encilhado, com mantas sem dobras, e que estavam sempre limpas para proteger o lombo de seu companheiro de lida no campo.  Inspirado em sua vida de anos anteriores, batizara-o de Tropeiro.

O fiel Tropeiro era o único amigo de Pedro, com quem o peão compartilhava histórias, delírios e o sonho de um dia sair daquela vida miserável para ter a sua própria estância. Preocupado com o parceiro, Pedro não o deixava ao relento, passando frio. Recolhia-o em sua humilde tapera e o cobria com um manto de pele. O cavalo, confiando totalmente em seu afetuoso dono, deitava ao seu lado completamente relaxado, esticava as patas e dormia, sem nenhum receio de que algo de ruim lhe acontecesse.

Como a tapera era pequena, Pedro ajeitava os poucos móveis que tinha, amontoando-os para que seu amigo pudesse deitar e descansar confortavelmente.

Quando o dia raiava, Tropeiro levantava e dava uma suave mordida no rosto de Pedro, que já havia despertado, mas encenava que ainda dormia, esperando que seu fiel amigo o acordasse com este gesto afetuoso. Então, Pedro erguia a cabeça, cumprimentava seu amigo com um bom dia e deslizava seus dedos carinhosamente sobre as crinas. Em seguida, levantava, fazia seu café e os dois amigos saíam para a lida na fazenda.

Durante toda a estação fria e cinzenta do inverno, a melancolia que poderia se abater sobre Pedro, por estar isolado das demais pessoas, foi repelida pela presença de seu amigo de todas as horas.

Taipa de Pedra:

Uma taipa de pedra, bastante antiga, rodeava a frente da propriedade, ostentando um grande portão de madeira de araucária, com o desenho de uma carroça e dois bois entalhados. Na parte interna, ladeando o portão, dois grandes pés de roseira – um vermelho e outro branco – ornamentavam o início da trilha que levava à casa do patrão. 

Pedro não possuía família nem casa própria; era um sonhador. Ao deitar-se, deixava os pensamentos voarem. Um sorriso estampava-lhe o rosto enquanto um filme passava por sua cabeça: via-se chegando ao local em uma charrete conduzida por seu imponente amigo Tropeiro, com a amada imaginária ao seu lado. Mas a realidade logo varria o sonho para longe, e Pedro, exausto de um dia intenso, virava a cabeça e dormia.

Primavera:

O inverno terminou, as roseiras explodiram em cores e perfumes que se irradiavam por toda a estância. E, em uma noite de céu iluminado por uma vastidão de estrelas e pela lua cheia, sob um vento brando soprando, Pedro deitou-se na grama em frente ao antigo casarão. Enquanto admirava a paisagem celestial que se estendia sobre si, adormeceu.

Primeiro Sonho:

Uma bela mulher, com cabelos negros como o breu de uma noite sem luar escorrendo sobre os ombros, como um anjo, desceu do céu, aproximou-se de Pedro, parou à sua frente e lhe disse: 'Pedro, sua sorte está em São Paulo. Se você quer melhorar de vida, venda o que tem e vá para lá, que seu sonho vai se concretizar.

Pedro acordou meio atordoado, ergueu-se da relva e retornou ao casarão, pensando: 'Que sonho mais doido, tchê!' Arrumou a cama e voltou a dormir

Despertou no outro dia com a imagem estonteante da mulher que lhe havia aparecido, mas logo concluiu que era coisa da sua cabeça. As tarefas na estância eram muitas, e o peão só parou para comer seu prato de comida ao meio-dia.

Passado de Pedro:

Quando a noite caiu, Pedro, bastante cansado e, desta vez, não sonhou acordado no local de costume. Uma saudade imensa de sua mãe, seu pai e seu irmão mais novo o invadiu. Pedro havia perdido a família durante uma forte tempestade, quando ainda era jovem. O vendaval derrubou a casa onde moravam, e somente ele se salvou, protegido por uma grande mesa de madeira maciça, debaixo da qual se abrigara.

Após a tragédia, Pedro  tornou-se um viajante solitário. Montado em seu cavalo, percorria as pradarias gaúchas, oferecendo serviços a fazendeiros por onde passava. Isso até o dia em que começou a trabalhar com Setembrino e se tornou o homem de confiança do fazendeiro.

Carregado de saudades de uma época perdida no tempo, seus olhos marejaram. Antes de dormir, saiu da casa e percorreu mais uma vez a vastidão do Universo que se estendia sobre sua cabeça. Seus pensamentos voaram novamente, como se quisessem ir de encontro às estrelas e à lua que brilhavam no céu.

Um tímido sorriso estampou-lhe o rosto. Com o corpo dolorido do árduo trabalho, entrou em sua casa, deitou, ajeitou o lençol e dormiu.

Segundo Sonho:

Novamente, a bela mulher do sonho anterior retornou. Aproximou-se do peão e, desta vez, cochichou em seu ouvido, como se houvesse alguém próximo que não pudesse ouvir: 'Pedro, sua sorte está em São Paulo. Você precisa ir para lá para ter a vida que tanto sonha.' Depois, virou-se e subiu em direção ao céu, até sumir no infinito.

A Relutância de Pedro e a Decisão de Ir:

Pedro acordou no dia seguinte atordoado e passou o tempo todo pensando nos atuais acontecimentos. Mas, sem coragem para vender seu único bem e amigo – o cavalo que o acompanhara em suas peregrinações pelo Rio Grande do Sul e que era seu confidente –, pôs-se a trabalhar sem parar.

Quando a noite chegou novamente, Pedro sonhou acordado na pedra onde sempre se sentava ao entardecer. Imagens dele com sua amada, chegando em casa em uma charrete com seu fiel Tropeiro, voltaram a pulsar em sua fértil imaginação. Depois de alguns minutos, entrou em sua casa, sentou-se no caixote em frente à velha mesa de madeira e, extremamente cansado, adormeceu.

O Terceiro Sonho:

Desta vez, a bela mulher de cabelos negros surgiu em uma charrete, trazendo nas mãos uma panela cheia de ouro. Parou à frente de Pedro e disse: 'Você só vai encontrar esta panela se for para São Paulo.' E sumiu. Pedro acordou atônito e não conseguiu mais dormir. Passou a noite caminhando pela casa; às vezes, saía e olhava para o horizonte, como se esperasse que a mulher do sonho surgisse em carne e osso.

No dia seguinte, Pedro apanhou o cavalo e conversou com ele, dizendo que o viria buscar, custe o que custar, mas que precisava ir atrás de sua sorte. Foi até a cidade e o vendeu, desfazendo-se de seu companheiro de tantas jornadas.

A despedida dos dois foi marcada por uma tristeza avassaladora. Pedro, entre soluços e lágrimas, abraçou seu pescoço e acariciou as crinas, repetindo a promessa de que viria buscar seu amigo.

Tropeiro, percebendo o que se passava ao seu redor, ficou estático. Não balançou o pescoço nem relinchou, parecia estar imerso em uma tristeza sem fim. Pedro seguiu até a estação, apanhou o trem e partiu para a grande capital paulista.

Pedro em São Paulo:

Chegou à imensa metrópole sem saber o que fazer, nem para onde ir. 'Afinal, onde estaria essa panela de ouro em uma cidade tão grande como São Paulo?', pensava.  Durante dias, sem destino, e sem saber que caminho seguir vagou pelas ruas, dormiu em praças, visitou igrejas e pediu ajuda divina, mas em vão.

Com seus últimos trocados no bolso, um desolado Pedro resolveu afogar sua angustia em um bar. Entornou uns copos de cachaça e, em alguns momentos, chorou solitariamente. Havia perdido o seu fiel amigo e quase todo o dinheiro que tinha;  só restava voltar para sua terra, agora, completamente sozinho no mundo

Um estranho que também bebia no bar, vendo Pedro naquela tristeza, aproximou-se, se apresentou como Anastácio Ferreira e puxou conversa, querendo saber o que acontecia com o peão.

Pedro, então, contou sua história, revelando que, por causa desse sonho, havia perdido o companheiro de vida.

A revelação:

O estranho então falou: 'Mas você é louco de vender seu único bem por causa de um sonho! Um sonho é somente um sonho. Eu tive um sonho parecido com o teu: eu tinha que vender tudo e ir para o Rio Grande do Sul atrás de uma fazenda que era rodeada por uma taipa de pedra, com um portão entalhado com uma carroça e dois bois. No sonho, havia dois pés de roseira ao lado do caminho que levava a um casarão, e sob uma das roseiras, havia uma panela de ouro.'

Mas eu não sou louco de vender tudo o que eu tenho e sair para me aventurar por causa de um sonho. O senhor pegue o resto do dinheiro que tem e volte para sua casa.

Pedro emudeceu, imerso em um silêncio sepulcral. Despediu-se do desconhecido, foi até a estação de trem, dormiu por lá mesmo e, no dia seguinte, voltou para sua terra.

A Panela de Ouro:

Chegando à estância, Pedro cavou embaixo das roseiras e encontrou a sonhada panela, repleta de moedas de ouro cunhadas durante o Império do Brasil.

No fundo do recipiente, encontrou uma carta, escrita por um tal de Josias Ferreira destinada ao seu neto. Nela, o homem contava que havia migrado da cidade de São Paulo para o Rio Grande do Sul e tinha sido contratado por Jesuíno Estáquio para trabalhar em sua lavoura. Foi nas terras do patrão que ele acabou descobrindo aquela panela de ouro.

Ele a roubou e sumiu, deixando pistas falsas na mesa que indicavam que estava retornando para sua terra natal, tentando assim evitar ser caçado pela polícia.

Enquanto perambulava por terras gaúchas, um grupo de bandoleiros, com o qual o gatuno havia confrontado enquanto tentava vender o fruto do que havia subtraído de seu patrão, passou a persegui-lo. Eles estavam desconfiados que ele carregava algo de muito valor.

Apavorado e acreditando que não conseguiria sair vivo dessa perseguição, Josias conseguiu despistar os bandidos por um momento. Em uma propriedade abandonada, escavou e enterrou seu tesouro.

Em uma carta endereçada a seu neto recém-nascido, chamado Anastácio, Ferreira dizia que o tesouro era sua herança e que, quando chegasse a hora, daria um jeito de se comunicar com ele para indicar onde o havia enterrado.

Finalmente, depois de anos de sofrimento, a vida esboçou um sorriso para Pedro. Era necessário negociar seu tesouro, e para tanto o peão precisaria se deslocar até a cidade de Passo Fundo para vendê-las em uma agência do Banco do Brasil.

O Reencontro de Pedro e |Tropeiro:

O primeiro passo de Pedro foi ir atrás de Tropeiro para resgatar seu amigo, com uma pequena parte do tesouro: duas ou três moedas seriam suficientes. E assim o fez, mas precisou inventar uma história: uma tia distante havia falecido, e aquelas moedas eram o pouco que ela havia deixado para ele.

Quando Tropeiro viu seu antigo dono se aproximar, soltou um relincho baixo, quase murmurante. Conforme Pedro se aproximava, o som emitido pelo cavalo aumentava gradativamente, até que, ao ficarem próximos, o relincho se tornou alto e comprido. Suas orelhas passaram a mover-se atentas, até que Pedro bradou: 'Tropeiro, meu amigo, eu voltei para lhe buscar!' E o cavalo, compreendendo que seus dias de solidão tinham acabado, começou a balançar efusivamente o rabo, suspirando e esfregando a cabeça no peito do amigo. Começou a raspar o chão com o casco da pata direita, erguendo-o logo em seguida e batendo com força no chão.

A Estância de Pedro:

Pedro recuperou seu amigo, e juntos partiram para Passo Fundo vender o ouro. Concluída a negociação, ele pediu demissão do emprego e foi em busca de sua felicidade.  A tão sonhada estância foi adquirida.

Ela precisava de reformas, e o antigo peão começou ele mesmo a realizá-las. Nos fundos do casarão, encontrava-se um paiol antigo com vários objetos pertencentes aos primeiros proprietários, que haviam morrido ainda jovens. O marido tinha sido assassinado por um peão, e a esposa morreu de tristeza após perder seu grande amor. O único filho do casal cresceu em um orfanato.

Ao remexer em uma caixa velha, Pedro encontrou várias fotos e documentos, entre eles uma certidão de nascimento. Era do seu pai. Junto a ela, uma foto de uma mulher ainda jovem e muito bonita. Pedro ficou estarrecido, completamente imobilizado. Era a mesma mulher que aparecia em seus sonhos. Era sua avó.

Pedro, agora rico, contratou seus próprios peões, que acabaram formando fortes laços com ele. Eles tornaram-se mais que funcionários; tornaram-se amigos para toda a vida. Pedro não tinha mais apenas seu fiel Tropeiro ao seu lado. O agora fazendeiro precisava também de uma empregada doméstica para cuidar da casa enquanto ele tomava conta de sua estância.

Clara:

Ao tomar conhecimento sobre a vaga na fazenda, Clara, precisando muito ganhar seu sustento, bateu à porta de Pedro. Era uma jovem que, desde muito cedo, aprendeu a trabalhar. Ainda criança, ajudava os pais a arar a terra para o plantio. Sempre feliz, passou a infância brincando com bonecas feitas de espigas de milho que ela mesma criava. Tinha a alma de artista e costumava eternizar o pôr do sol no horizonte e o cotidiano da vida do interior em suas telas.

Partiu para a cidade em busca de uma oportunidade que lhe proporcionasse uma vida melhor e que talvez também lhe rendesse uns trocados para enviar aos pais. Tinha um sorriso largo e cativante, e quando seu olhar cruzou com o de Pedro, ao bater na porta da estância, foi paixão à primeira vista. Era como se os dois estivessem perdidos durante toda a vida, esperando que seus caminhos um dia se cruzassem.

Pedro acabou finalmente encontrando sua amada e, um dia, a imagem que por tanto tempo habitou sua imaginação tornou-se realidade.

Omar Dimbarre é produtor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.


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