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Seu José e Dona Maria Chaves  – Uma História de Cinema

Conheça a emocionante história de Seu José e Dona Maria, marcada pelo amor, desafios e uma paixão arrebatadora pelo cinema no interior de SC.

Omar Dimbarre

Omar Dimbarre

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O pio da coruja ecoava pelo vale, rasgando a penumbra noturna que se debruçava sobre os trilhos da estrada de ferro, que corriam paralelos às águas que deslizavam pelo Rio do Peixe. Em noites muito quentes, que chegavam sucedendo um dia chuvoso, uma sinfonia de rãs surgia em algum ponto do caminho.

O barulho dos pés pisando as britas que envolviam os dormentes era ampliado pelo imenso silêncio que pairava no lugar. A sensação era de estar em um filme de suspense, onde, a qualquer instante, um psicopata poderia saltar do mato que margeava o caminho e, com um punhal em mãos, parar em frente às suas vítimas. Essa impressão assustadora, às vezes, recebia uma dose extra de sinais, complementados pelo barulho de algum gambá que, interrompendo sua busca por alimentos e assustado com a presença de intrusos em seu território, batia em retirada.

E era nesse clima cinematográfico que os irmãos Chaves trilhavam seu percurso em direção à cidade. José, Amilton, Aírton, Wilson e Alcides iniciavam sua jornada na Linha Itororó, em Herval d'Oeste e, entre conversas, risos e arrepios causados pela atmosfera soturna que envolvia o ambiente, seguiam adiante, rompendo a negritude que encobria o chão que acolheria seus passos com os feixes de luz emitidos por uma única lanterna.

O destino era a sala de cinema. Quarta-feira, sábado e domingo eram dias sagrados, dedicados à contemplação da sétima arte. Mas, em muitos momentos, este ritual quase místico – de transpor um cenário misterioso e carregado de simbolismo para, ao final, deleitar-se em frente a uma tela grande e se deixar arrebatar pelas imagens que explodem dela – era diário.

O cinema era para a família uma devoção, quase um ritual religioso. José era um dos irmãos mais fanáticos e não media esforços para que esta paixão imensa estivesse sempre viva. Não tinha tempo ruim, nem chuva, nem frio, nem trovoada que o impedisse de cair na estrada e esquecer as agruras de um dia árduo de trabalho, vivenciando um fantástico mundo de histórias e fantasias, que só o mundo da arte pode proporcionar. 

Não muito longe de onde José  nasceu, no alto das terras que se erguem nos arredores de Joaçaba, onde a erva-mate brota em abundância, e o chimarrão instalou sua capital, nasceu  Maria Vilmes da Luz.

A estrada traçada para receber suas pegadas, cruzava um terreno íngreme envolto em densa névoa, tornando sua jornada rumo à construção da sua própria história, desafiadora e dolorida. Com apenas um ano e meio de idade, perdeu a mão acolhedora que afagava seus cabelos e a segurava em seus braços, enquanto seu andar ainda tropego, se fortalecia. Sem o carinho da mãe, sua infância e adolescência foram bastante sofridas.

Mas, o destino tinha um plano. Aos 9 anos de idade, a cidade de Catanduvas ficou para trás, e os morros que cercam as cidades de Joaçaba e Herval d´Oeste, abriram seus braços para receber sua família. Uma nova história iniciava.

Os sonhos que José Chaves e Maria acalentavam, muitas vezes perdidos ou sufocados, por enredos criados pelo próprio destino, acabaram se encontrando. A paixão brotou tão rapidamente quanto uma semente nova depositada em solo fértil.

Chaves, ao tomar conhecimento dos espinhos espalhados pelo chão que Maria pisava, resolveu tomar as rédeas da situação. Queria construir um mundo melhor para sua amada. Um mundo imerso e tomado pelo amor que, a cada dia, ligava mais suas almas. Juntos, elaboraram um plano de fuga.

Era um domingo de 1957, o dia  amanheceu ensolarado e tão vibrante como a vontade do casal de seguir junto pela mesma estrada, entrelaçando seus destinos.

O som do apito do trem, cortando a nuvem de fumaça que se espalhava pelos ares, anunciou sua chegada na estação. Um misto de alegria com o temor de ter seu plano fracassado antes mesmo da partida, tomou conta da dupla, que rapidamente entrou no vagão.

O chiado do vapor que se misturava com o rangido das rodas de aço, anunciando assim sua partida da estação, soou  como uma toada que embalava a liberdade que começava a ser conquistada.

Antes que o sol ficasse a pino, chegaram a Capinzal, cidade escolhida para acolher sua fuga. Hospedaram-se em um hotel, almoçaram no restaurante e subiram para o quarto. Logo que entraram em seu aposento, a paixão de José pela sétima arte começou a pulsar tão fortemente que seu peito parecia explodir. Maria não compartilhava com o seu amado, dessa mesma paixão, mas como estavam intrinsecamente ligados, dividiam suas emoções.

Antes de se estabelecerem em seu 'esconderijo', o casal havia parado em frente ao cinema, e Chaves contemplou, fascinado, os cartazes de filmes pendurados em sua fachada.

Então, um pouco desajeitado, José dirigiu-se a Maria e amorosamente falou: 'Bem, você fica aí sozinha, que eu vou ao matinê, porque vai passar um filme muito bom. Você não fica brava?'

Maria, sabendo do encantamento que seu amado tinha pela sétima arte e partilhando do seu sentimento, respondeu: 'Não, não fico brava, pode ir.'"

Com a alma transbordando de alegria, José tomou rumo ao cinema, e lá, vibrou, torceu para o mocinho e se emocionou com cada cena que rebentava na tela e era capturada pelo seu olhar hipnotizado, eternizando aquele acontecimento em suas memórias.

Maria aproveitou as horas em que estava sozinha para descansar e deixar sua imaginação viajar em seus sonhos, sonhos esses de estar nascendo para a felicidade de construir uma nova vida ao lado de seu grande amor.

Findada a sessão, os dois jovens enamorados, envoltos em paixão e arrebatados pelo contentamento de entrelaçarem seus devaneios, suas aspirações, seus ideais — enfim, suas vidas —, ficaram juntos até a noite. Foi então que, com outro filme imperdível em cartaz, o fascinado cinéfilo não pôde deixar de assistir.

Durante três dias, o casal ficou hospedado no hotel. Depois, eles retornaram para Herval d´Oeste e prosseguiram juntos até o momento em que seu José partiu deste mundo, há sete anos. Ano passado, Dona Maria seguiu o mesmo caminho, ao encontro de seu amado. Tamanha paixão, tamanho amor não tem fim.

Como em um filme de romance, onde nenhuma barreira é capaz de separar o mocinho e a mocinha, agora, as duas estrelas de sua própria obra cinematográfica, Dona Maria e Seu José,  seguem juntos em sua jornada rumo à eternidade.

Omar Dimbarre é produtor cultural, colecionador de cartazes originais de cinema, minerais e fragmentos de meteoritos. É apaixonado por artes — especialmente música e cinema —, fascinado pela natureza e por histórias populares, desenvolvendo projetos que visam recuperá-las.


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